Eu não esperava esse paraíso quando vim pra cá, mas confesso o leve tapa de surpresa infeliz que senti quando vi o primeiro mendigo pedindo esmola. Normalmente são idosos. Os jovens nessa situação, na maioria, saíram de casa por problemas com drogas, brigas com a família, gravidez inesperada ou qualquer coisa do tipo.
A diferença é que eles sabem ler e escrever e não tem a cara da miséria como a conhecemos, mas têm lá os seus motivos pra sentir fome. E sentem.
Hj eu saí do trabalho e e fui acertar umas coisas no banco. Na volta, entro no metrô e vejo uma cena curiosa para nós brasileiros:
Uma senhora, com os seus mais de 50, vestida normalmente, calça jeans, casaco, tênis surrado e uma mochila, escrevendo a sua fome num pedaço de papel.
A gente costuma passar por estas coisas com o escudo da indiferença. Nossos problemas são sempre mais importantes. Dessa vez eu parei. Alguma coisa me endureceu as pernas e eu não consegui mais andar. Fiquei pensando naquilo, por que motivo ela estaria ali? A gente vê tanta coisa assim, não tem como ser pai do mundo. Mas por que dessa vez parecia tão difícil virar o rosto e me afastar?
Eu fui tentando endurecer o coração, me lembrei dos problemas que me esperavam em casa, fui seguindo o meu caminho e quando vi, ja estava la embaixo, esperando o metrô. La embaixo mesmo. Cada degrau que eu descia me fazia menor em sentimento e significado. Em 1 minuto o metrô chegou e as portas se abriram. Lembra de "Caverna do Dragão"? Sabe quando eles se deparavam com o portal de volta para Terra, mas sempre tinha alguém ferido no caminho e se eles entrassem teriam de abandonar aquela pessoa? Me senti daquele jeito. O sentimento era: "entra, vai pra casa, ser agraciado pela maciez do colchão quente, gozar do benefício do ter, e ser pisoteado pela certeza de não ser."
As portas se fecharam. E eu voltei. No caminho, o velhinho dos teclados me ajudou um bocado, tocando Sonata No 14 de Beethoven. Mais triste impossível. Parecia cena de filme. Quer ouvir pra sentir na pele?
Quando cheguei lá em cima de novo, fui me aproximando devagar (aqui as pessoas respeitam mais o espaço de cada um) e perguntei então se ela se importaria se eu comprasse uma fatia de pizza pra ela na lanchonete logo ao lado. Ela me olhou surpresa, sorriu numa timidez singular e não conseguiu esconder a água nos olhos. Pedi licença, fui rapidamente na lanchonete e comprei uma promoção de 2 fatias de pizza e um refrigerante. Quando eu voltei com o lanche, ela olhou pra pizza como se fosse a ultima do planeta. Perguntei se eu podia ficar um pouco e conversar com ela. Imagina você se o presidente te pedir pra sentar na sua sala e tomar um café, pois era bem assim, ela ficou olhando ao redor, pra ver se não tinha nenhuma sujeira no chão, afinal, estávamos do lado de algumas lixeiras. Me agachei ao lado dela e puxei assunto. Em questão de segundos, ela, com as mãos mais sofridas e sujas que eu já vi nessa vida, já tinha engolido a primeira fatia. A segunda ela me perguntou se eu me importava que ela guardasse pra mais tarde, então dobrou o pratinho com a pizza dentro e colocou-a na mochila. Eu perguntei o nome dela. Kim, a família dela veio da Inglaterra no fim do século passado, mas todos já haviam morrido, só tinha ficado ela e uma prima de 2o grau que nem a conhece direito, e mora em Toronto. Ela tem um filho que estuda, e vez ou outra, trabalha. Ele não sabe que ela fica pelas ruas. É sempre ela quem o visita, e faz isso muito raramente, ela disse que não pede ajuda a ele, pois não quer estressá-lo, pode? Conversamos por uns 20 minutos. No início ela pediu que eu não me chateasse por ela não sorrir muito, pois quando ela sorria, as pessoas não ajudavam. No final, as moedas que não vieram já estavam valendo menos do que a chance de bater papo, falar da vida, e ter um pouco de atenção. Nisso eu já estava sentado do lado dela, rindo e falando do Brasil, ela falando do Canadá, e sabe qual foi a sensação? De que eu tinha passado pro outro lado da parede. E ao invés de não enxergá-la, eu não me lembrava mais de que ali na frente passavam 100 pessoas por minuto, é como se eu estivesse na sala de estar, até me assustei quando um rapaz veio colocar 1 dólar no copinho dela.
Uma hora ela me falou sobre a forma que as pessoas se fecham e sequer olham pra necessidade dos outros. Eu disse que as pessoas preferem fingir que não enxergam do que encarar uma realidade difícil. Enxergar a dor dos outros e não fazer nada dói mais do que fingir que não viu. Contei sobre uma propaganda de TV que vi, onde um cego que pede ajuda na rua, com uma simples mudança nas escolhas das suas palavras, consegue mudar a sua situação. Vale a pena assistir:
Sugeri a ela no lugar de "estou faminta, me ajude", que escrevesse "é um belo dia lá fora, queria poder aproveitá-lo". Ela abriu um sorriso enorme, e correu pra pegar uma caneta e um pedaço de papel todo rabiscado e sujo, e anotou.
De repente eu recebo uma mensagem no celular, quando eu tirei ele do bolso pra ver o que era, ela olhou com a maior cara de surpresa e perguntou: "nossa, que telefone é esse?", um iPhone, mas pra ela, era como um disco voador. Perguntei se ela queria tirar uma foto comigo, e pronto, ela terminou de abrir o sorriso. Com isso eu me despedi, desejei o melhor a ela, e disse que se encontrá-la novamente vou perguntar se a frase deu sorte. Vendo a foto agora eu percebo que a expressão de dor e solidão que encontrei ao chegar já não tinha mais lugar no rosto da senhora que deixei lá no metrô. (Não nego que a foto escondeu um pouco as rugas e imperfeições de uma vida nas ruas).
Isso aqui é lindo, é seguro, as pessoas têm direito a uma vida mais justa e equilibrada. Não é o céu. Como todos os lugares do mundo, têm lágrimas e sorrisos. Mas a cada vez que a gente se move pra fazer alguém sorrir, é no nosso peito que o sorriso se estampa. Ame quem menos parece merecer. Não espere nada em troca. Leve isso onde for, Brasil, Canadá ou qualquer outro canto, pois sentimento não muda por que é em português, francês ou inglês.